quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Comemoração do Dia Mundial da Filosofia

O Grupo de Filosofia da Escola Secundária de Alberto Sampaio comemora o Dia Mundial da Filosofia com as seguintes atividades:




domingo, 16 de novembro de 2014

Demonstração e argumentação

Uma dedução é um argumento que, dadas certas coisas, algo além dessas coisas necessariamente se segue delas. É uma demonstração quando as premissas das quais a dedução parte são verdadeiras e primitivas, ou são tais que o nosso conhecimento delas teve inicialmente origem em premissas que são primitivas e verdadeiras; e é uma dedução dialéctica se raciocina a partir de opiniões respeitáveis.
Aristóteles, Tópicos, 100ª

Considerando o tipo de argumentos cuja validade é dedutiva, Aristóteles distingue a «demonstração» da «dedução dialética».
Mas, o que existe de comum e de diferente entre uma demonstração e uma dedução dialética? Comparemos os seguintes argumentos:
1) 100 é um número inteiro divisível por 2.
    Todo o número inteiro divisível por 2 é um número par.
Logo, 100 é um número par.

          2) O dever de não mentir é um dever moral.
    Todos os deveres morais são absolutos.
              Logo, o dever de não mentir é um dever absoluto.

a)     Os argumentos 1 e 2 têm a mesma forma lógica, que pode ser representada deste modo:
                                    Algum A é B.
                                Todo o B é C.
                                Logo, algum A é C.

(NB: As letras A, B, C simbolizam termos gerais que designam uma dada classe ou coleção de coisas, como «100» ou «o dever de não mentir», «número inteiro divisível por 2» ou «dever moral», etc.)

b) Os argumentos 1 e 2 são, ambos, dedutivamente válidos. Portanto, é impossível que sendo as suas premissas verdadeiras a conclusão possa ser falsa.
c)  E, sendo 1 e 2 argumentos dedutivamente válidos, se tiverem premissas verdadeiras, ambos serão argumentos sólidos.
d)    Mas, será que 1 e 2 são ambos argumentos sólidos?

Eis uma diferença entre estes argumentos:
As premissas de 1 são verdades bem estabelecidas e indisputáveis. Qualquer criança sabe distinguir os números pares dos números ímpares, pelo menos desde o 1º Ciclo, e não terá qualquer dificuldade em aceitar a conclusão, e até compreende que não pode deixar de a aceitar obrigatoriamente.
Mas, quanto às premissas de 2, pelo menos a segunda não é uma verdade bem estabelecida e indisputável, nem para as crianças nem mesmo para adultos bem informados. Quando muito, é apenas plausível ou verosímil.
 O que é que se conclui desta diferença?
Conclui-se que o argumento 1 é um argumento sólido. Não é racional aceitar as premissas e não aceitar a conclusão.
Se usarmos a terminologia de Aristóteles, denominar-se-á o argumento 1 de «demonstração», porque é um argumento dedutivo válido, com premissas que são verdades evidentes ou bem estabelecidas, o que implica que é obrigatória a aceitação da sua conclusão, pois esta segue-se logicamente de verdades indisputáveis.
Mas, quanto ao argumento 2, que também é dedutivamente válido, conclui-se que a sua solidez é disputável, porque a verdade da segunda premissa não está bem estabelecida. A proposição de que os deveres morais são absolutos é objeto de uma profunda controvérsia entre utilitaristas e deontologistas, por exemplo, e mesmo entre estes últimos, que em geral são favoráveis a essa ideia, não há uma forma comum de entender o estatuto dos deveres morais.
Por isso, um agente cognitivo, seja criança ou adulto, não está constrangido a aceitar a conclusão do argumento 2 e até é racional contestá-la. Para isso, basta apresentar as melhores razões contra as premissas.
E, se usarmos a terminologia de Aristóteles também neste caso, denominar-se-á o argumento 2 de «dedução dialética», porque é um argumento dedutivo válido com uma premissa cuja verdade é apenas provável ou verosímil.
O universo da argumentação compreende o estudo da lógica formal e da lógica informal. A lógica formal estuda os aspetos lógicos da argumentação que se podem explicar exclusivamente pela forma lógica. A lógica informal estuda os aspetos da argumentação que não dependem exclusivamente da forma lógica. Por isso, a lógica informal também estuda certos aspetos dos argumentos dedutivos válidos, como a relação de plausibilidade das premissas relativamente à conclusão e como a importância e consequências do estado cognitivo dos agentes envolvidos na argumentação para a própria argumentação.

José António Pereira
Escola Secundária de Alberto Sampaio

Demonstração

Estabelecer conclusivamente a verdade de uma proposição é demonstrá-la. Numa demonstração direta, estabelece-se a verdade da proposição p quando se deriva validamente p de premissas verdadeiras. Numa demonstração indireta, a verdade de p é estabelecida quando se refuta não p.
Note-se que «demonstração» (como «demonstrar», «demonstrável», etc.) é um termo factivo. Demonstrar algo é conseguir estabelecer isso, e é diferente de argumentar apenas a seu favor, ou seja, de procurar estabelecer tal coisa. De igual modo, refutar uma afirmação é conseguir mostrar a sua falsidade, e é mais do que argumentar apenas contra ela.

Mautner, T. (2010). Dicionário de filosofia. Lisboa: Edições 70, p. 190.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Curso de formação: Filosofia para crianças e jovens - A comunidade de investigação

De 13 a 21 de outubro de 2014, vai decorrer na Escola Secundária de Alberto Sampaio o curso de formação Filosofia para crianças e jovens - A comunidade de investigação.


domingo, 13 de julho de 2014

Resultados do Exame Nacional de Filosofia 2013-2014 1.ª Fase

As tabelas seguintes resumem os resultados do exame nacional de Filosofia do 11.º ano, na Escola Secundária de Alberto Sampaio comparativamente com os nacionais:

Alunos internos

Número de Exames MédiaCIF Média Exame Dif_EX_CIF Correlação CIF-CE
ESAS 13 15,1 11,8 -3,3 0,82
Nacional 7956 13,7 10,3 -3,4 0,61

Alunos internos e externos

Número de Exames Média Exame
ESAS 25 10,2
Nacional 11513 9,7

Nenhum dos meus alunos foi fazer o exame como interno.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Será a crença em Deus apropriadamente básica?

No próximo dia 30 de maio, Domingos Faria, autor do blogue Sebenta de Filosofia e coautor do manual de Filosofia Como Pensar tudo isto?, estará na Escola Secundária de Alberto Sampaio, em Braga, para proferir uma palestra com o título: Será a crença em Deus apropriadamente básica?
O cartaz de divulgação da palestra está aqui: http://www.esas.pt/dfa/

domingo, 11 de maio de 2014

Existencialismo

No âmbito da articulação com a disciplina de Português, selecionei quatro textos sobre o existencialismo, para explorar nas aulas. Para cada texto elaborei um conjunto de perguntas para serem respondidas pelos alunos. Os textos estão aqui:




domingo, 2 de fevereiro de 2014

O que torna uma ação correta? – Como funcionam os exemplos filosóficos.

[O]s exemplos que os filósofos usam destinam-se a ajudar as pessoas a pensar sobre o seu pensamento sobre uma questão. Desta forma, tais exemplos podem ajudar as pessoas a clarificar as suas opiniões. Podem também ajudá-las a ver se as suas opiniões estão bem apoiadas no seu raciocínio. E, se não estiverem, a desenvolverem esse apoio, ou a revê-las. Para vermos como os exemplos dos filósofos podem ajudar as pessoas a pensar mais claramente, veja-se este exemplo filosófico clássico:
Caso do vagão 1: Você está a trabalhar numa mina de carvão com uma galeria em forma de Y. A parte mais longa da galeria conduz à superfície. Os dois braços do Y são as galerias de onde o carvão é retirado. O carvão é retirado da mina por um vagão que é puxado por uma corrente. Infelizmente, a corrente parte-se, e o vagão cai descontroladamente pela galeria principal abaixo. Os pontos da junção dirigem de momento o vagão para a galeria direita, onde irá matar cinco mineiros que lá trabalham. No entanto, você pode mudar o vagão para a galeria esquerda, onde só matará um mineiro. (Todos os mineiros são igualmente amados pelas suas famílias, igualmente inteligentes, etc.) Moralmente, o que deveria você fazer?
Quando confrontadas com este exemplo, a maioria das pessoas diria que mudaria o vagão, com a justificação de que assim causariam menor sofrimento. Em resposta a isto, um filósofo poderia então fornecer o exemplo seguinte:
Caso do vagão 2: Você trabalha numa mina com uma única galeria que desce. Os vagões sobem e descem por esta galeria, tirando carvão da mina. A corrente que puxa um vagão parte-se, e ele cai descontrolado em direção a cinco mineiros que trabalham no fundo da galeria. Você está junto aos carris do vagão. Você é demasiado pequeno para o parar saltando para a frente dele, mas um colega seu que está junto de si é bastante grande, e se você o empurrar para a frente do vagão, impedi-lo-á de matar os cinco mineiros. Infelizmente, ao fazer isto, o seu colega morrerá. Moralmente, o que deverá você fazer?
Neste caso, a maioria das pessoas recusaria lançar outra pessoa para a frente do vagão para salvar os cinco mineiros. Mas, à primeira vista, a decisão de não lançar o colega para a frente do vagão parece estranha, dado que no Caso 1 a maioria das pessoas diria que se deveria sacrificar uma pessoa para salvar cinco. Afinal, parece que a única diferença entre o Caso 1 e o Caso 2 é que no primeiro caso estar-se-ia a atirar um vagão contra uma pessoa para salvar cinco mineiros, e no segundo, a atirar uma pessoa contra um vagão para salvar cinco mineiros. E não parece que o que for atirado para salvar cinco mineiros faça muita diferença moral, dado que em ambos os casos a ação escolhida salvaria cinco pessoas sacrificando uma.
O leitor poderá dizer que nunca será confrontado com a decisão de sacrificar uma pessoa para salvar cinco e, portanto, em vez de ser útil para defender os filósofos da acusação de que os seus exemplos não são práticos nem relevantes, o debate aqui referido apenas a confirma. Mas argumentar desta forma seria perder de vista o obje­tivo dos dois Casos do Vagão, que é o de ajudar as pessoas a clarificar o seu pensamento acerca do que torna as ações moralmente corretas. Na verdade, o leitor tem tantas probabilidades de encontrar um vagão descontrolado por uma mina abaixo como de ser atingido na cabeça por uma galinha de borracha atirada por um cavaleiro de passagem. Mas isto não impede que o facto de usar estes exemplos possa ajudar o leitor a avaliar se as suas opiniões originais sobre o que torna uma ação correta estão certas ou não. […] [O] seu pensamento acerca dos Casos do Vagão levá-lo-á a pensar acerca do seu próprio pensamento sobre o que torna correta uma ação.
Por exemplo: se começou por pensar que um ato é correto se minimizar o sofrimento (uma versão da teoria ética conhecida por «utilitarismo»), poderá ter de rever a sua opinião quando confrontado com o caso 2. Poderá ter de abandonar também esta opinião e tentar encontrar outro princípio para determinar o que torna correta uma ação, ou então poderá decidir tentar rever a sua opinião original para poder albergar a sua intuição de que não se deve empurrar pessoas para a frente de vagões, mesmo que ao fazê-lo vá salvar mais vidas. No segundo caso, poderá acabar por adotar uma versão de «utilitarismo de regra», segundo o qual um ato é correto se for conforme a uma regra geral que, quando seguida, minimizará o sofrimento. Assim, dado que a regra «não empurrar pessoas para a frente de vagões» é passível de minimizar o sofrimento, o leitor poderia modificar a sua posição utilitária original a fim de albergar o segundo caso. […] [O]s filósofos, ao construírem os seus exemplos, encorajam as pessoas tanto a pensar numa determinada questão (tal como «O que torna uma ação correta?») como a serem a assistência do seu próprio pensamento, e a pensar acerca do seu pensamento sobre esta questão.

Taylor, James (2008). Porque é que um filósofo é como um Python? Como funcionam os exemplos filosóficos. In Gary Hardcastle e George Reich (Orgs.). A Filosofia segundo Monty Python. Cruz Quebrada: Estrela Polar, pp. 218-220.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Aparência e realidade - o problema do conhecimento

Será o conhecimento possível?
Veja este vídeo disponibilizado por Domingos Faria, do Manual Escolar 2.0 - Filosofia, aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=KMhigIfaKxU

Conhecimento a priori e conhecimento a posteriori

Conhecimento a priori

O conhecimento a posteriori e a priori são modalidades epistémicas. Uma proposição é conhecível a priori se, e só se, pode ser conhecida sem o concurso da experiência empírica. Assim, 2 + 2 = 4 é uma proposição conhecível a priori porque posso conhecê-la recorrendo unicamente ao pensamento. Mas para saber que a água é H2O tenho de me socorrer da experiência empírica — não posso fazê-lo recorrendo unicamente ao pensamento. Dada a definição de analiticidade [uma frase é uma verdade analítica se, e só se, o significado das palavras que nela ocorrem e a sua sintaxe for suficiente para saber que é verdadeira], é fácil perceber que todas as frases analíticas exprimem proposições conhecíveis a priori. Pois se para saber o valor de verdade de uma frase analítica basta reflectir sobre o significado das palavras e a sintaxe da frase, isso significa que não é necessário recorrer à experiência empírica para identificar como verdadeira a proposição expressa.
Todo o conhecimento proposicional é uma relação entre um agente cognitivo e uma proposição que é por ele conhecida. Logo, também o conhecimento a priori é uma relação entre um agente cognitivo e uma proposição que é por ele conhecida. Assim, um modo mais rigoroso de definir conhecimento a priori é o seguinte:
  • Uma dada proposição é conhecível a priori por um dado agente cognitivo se, e só se, esse agente pode conhecer essa proposição sem recorrer à experiência empírica.
Posto isto, considere-se as seguintes duas frases:
1) Se Sócrates era um ser humano, era um ser humano.
2) Sócrates era mais pesado do que Platão.
Os recursos envolvidos para poder conhecer o valor de verdade destas frases diferem substancialmente. No primeiro caso, basta raciocinar; no segundo, é preciso recolher informações históricas sobre Sócrates e Platão. No primeiro caso, o agente cognitivo limita-se a pensar; no segundo, é preciso consultar documentos, testemunhos e estudos.
No entanto, para que alguém saiba que a primeira frase é verdadeira tem de compreender as palavras que nela ocorrem. Se um polícia chinês que nada saiba de português for confrontado com uma inscrição desta frase num bloco de notas de um presumível assassino, terá de consultar dicionários e gramáticas, ou falar com pessoas que saibam português. Só depois desta actividade empírica poderá o polícia chinês perceber que a frase é verdadeira. Todavia, isto não impede a frase 1, que exprime uma verdade lógica elementar, de ser conhecível a priori.
O conhecimento do significado das palavras, apesar de claramente empírico, não torna a frase 1 unicamente conhecível a posteriori. Continua a existir uma diferença crucial entre o tipo de experiência necessário para determinar o valor de verdade das frases 1 e 2. O conhecimento necessário para determinar o valor de verdade da frase 1 é meramente linguístico; o conhecimento necessário para determinar o valor de verdade da frase 2 é extralinguístico.
A experiência empírica necessária para compreender o significado das palavras não conta. Esta decisão não é arbitrária. Para determinar o valor de verdade de qualquer frase, seja ela qual for, é necessário ter um conhecimento, que terá de ser empírico, do significado das palavras envolvidas. Logo, se não aceitássemos a nossa decisão, a categoria do conhecimento a priori ficaria vazia. No entanto, é óbvio que há uma diferença substancial entre saber que se Sócrates era mortal, era mortal e saber que Sócrates era mais pesado do que Platão. No primeiro caso não temos de possuir qualquer informação factual além da linguística; no segundo, a informação linguística, só por si, não é suficiente para determinar o valor de verdade da frase. Logo, há uma distinção que deve ser mantida e que corresponde à divisão tradicional entre conhecimento a priori e conhecimento a posteriori.
Há uma excepção adicional. As verdades da aritmética e da lógica são, tipicamente, susceptíveis de ser conhecidas a priori. No entanto, podemos ser incapazes de determinar por puro raciocínio que uma fórmula como {(p v q) Λ [(p -> r) Λ (q -> r)]} -> r é logicamente verdadeira. Para determinar o valor de verdade desta fórmula, podemos ter de fazer uma tabela de verdade. Todavia, o conhecimento assim obtido é ainda a priori. Fazer uma tabela de verdade é uma mera extensão da capacidade de cálculo; nada diz sobre o mundo para além da tabela de verdade. Apesar de podermos ter de recorrer a papel e lápis para realizar alguns cálculos complexos, como equações ou fórmulas lógicas complexas, o resultado é conhecido a priori.

 A teoria tradicional do a priori

Na tradição filosófica há aparentemente a ideia de que o que é conhecido a priori por um agente, não poderia ter sido conhecido a posteriori por esse agente. Kripke argumenta que esta ideia está errada. Os exemplos são muito simples: apesar de eu poder saber a priori que a soma de 2345 com 12445 é 14790 — porque posso fazer um cálculo mental —, posso também conhecer a posteriori este resultado, através de uma calculadora, ou perguntando a alguém que tenha feito o cálculo.
Uma rota segura para a confusão é falar de proposições a priori e a posteriori, em vez de conhecimento a priori ou a posteriori. Como vimos, o conhecimento é uma relação entre agentes cognitivos e proposições; logo, as proposições não são primitivamente a priori ou a posteriori — o que elas são é susceptíveis de serem conhecidas a priori ou a posteriori. A distinção pode parecer menor, mas é crucial para evitar confusões. Uma mesma proposição pode ser conhecida, pelo mesmo agente cognitivo ou por diferentes agentes cognitivos, de maneiras diferentes. Por exemplo, na escola, o meu professor pode ensinar-me o teorema de Pitágoras. O teorema foi por mim conhecido a posteriori. Mais tarde, depois de aprender mais geometria, posso demonstrar por mim mesmo o teorema; e quando faço isso passo a ter um conhecimento a priori do teorema. Mas há casos em que isto não pode acontecer; na escola aprendi também que Sócrates foi condenado à morte. Mas, por mais que pense, nunca poderei estabelecer a priori que isso é verdade.
O modo mais justo de entender a distinção tradicional entre o a priori e o a posteriori é o seguinte: há uma classe de proposições que não são conhecíveis a priori (pelos seres humanos). Por uma liberdade de linguagem podemos dizer que essas são proposições a posteriori. Mas é preciso ficar claro que se usarmos esta terminologia, somos forçados a dizer algo que parece uma contradição: que uma proposição a priori pode ser a posteriori. Espero que seja claro que não se trata de uma contradição, mas de um facto banal: quer apenas dizer que uma proposição da aritmética, por exemplo, pode ser conhecida pelo pensamento puro; mas também pode ser conhecida por testemunho, caso em que é conhecida a posteriori. O ponto crucial é que estas proposições que são conhecíveis a priori contrastam com proposições que não são conhecíveis a priori, como a proposição expressa pela frase «A água é H2O». Todas as proposições conhecíveis a priori são conhecíveis a posteriori; mas há uma classe de proposições que só são conhecíveis a posteriori.
Os filósofos tradicionais não mostraram qualquer interesse no facto de uma proposição conhecível a priori ser também conhecível a posteriori porque talvez estivesse subentendido que estavam a falar unicamente de «conhecimento primitivo». Neste sentido, o teorema de Pitágoras, por exemplo, é conhecível a posteriori, mas não é primitivamente conhecível a posteriori; no princípio da cadeia causal do conhecimento, alguém teve de conhecer a priori o teorema de Pitágoras para depois o poder transmitir a posteriori a outra pessoa. Podemos assim dizer que apesar de as verdades conhecíveis a priori serem derivadamente conhecíveis a posteriori, nenhuma verdade conhecível a priori é primitivamente conhecívela posteriori.
Neste aspecto, as ideias de Kripke são muito mais conciliáveis com as ideias tradicionais do que pode parecer à primeira vista. Todavia, há um aspecto no qual as ideias de Kripke são irreconciliáveis com as teorias tradicionais. Diz-se por vezes que Kripke defende o «necessário a posteriori». É preciso saber exactamente o que isto quer dizer. Uma interpretação excessivamente fraca é que as verdades necessárias conhecíveis podem ser conhecidas a posteriori. Esta interpretação demasiado fraca é conciliável com as ideias tradicionais, pois trata-se apenas da ideia de que qualquer verdade conhecível é derivadamente conhecível a posteriori. A interpretação que capta o verdadeiro alcance das ideias de Kripke é a seguinte: há verdades necessárias conhecíveis que não são conhecíveis a priori — como «A água é necessariamente H2O». E esta ideia é irreconciliável com as ideias tradicionais.
Todavia, a teoria de Kripke é muito menos espantosa do que pode parecer à primeira vista. Considere-se o seguinte argumento:
Todos os seres humanos são mortais.
Sócrates era um ser humano.
Logo, Sócrates era mortal.
A conclusão não é conhecível a priori; no entanto, pode ser obtida por «meios lógicos». Se pensarmos que tudo o que se conhece por meios lógicos é conhecível a priori, ficamos com um enigma. Enigma que se esclarece quando temos em consideração que não basta saber que esta conclusão se deriva validamente das premissas em causa para saber que é verdadeira; para saber que a conclusão é verdadeira é preciso também saber que as premissas são todas verdadeiras. Ora, as premissas não são conhecíveis a priori. Logo, também a conclusão não é conhecível a priori.
Kripke mostrou que há um certo tipo de verdades necessárias que só conhecemos indirectamente, por meio de inferências em que pelo menos uma das premissas só é conhecível a posteriori. O problema da teoria tradicional foi não ter tido em conta que em certos casos o conhecimento só pode alcançar-se indirectamente, por meio de uma inferência. De facto, se pensarmos que todas as proposições conhecíveis são susceptíveis de ser directamente conhecidas, não se vê como poderemos conhecer verdades necessárias que não sejam lógicas ou matemáticas — e como estas verdades são conhecíveis a priori somos levados a concluir que todas as verdades necessárias conhecíveis são conhecíveis a priori. A teoria de Kripke não nega que todas as verdades necessárias directamente conhecíveis sejam conhecíveis a priori(como as verdades da lógica e da matemática). O que nega é que todas as verdades necessárias sejam directamente conhecíveis; defende que certas verdades necessárias (como «A água é H2O») só podem ser conhecidas indirectamente, por meio de raciocínios com várias premissas. E quando os únicos raciocínios disponíveis para conhecer essas verdades são raciocínios com pelo menos uma premissa a posteriori, essas verdades só poderão ser conhecidas a posteriori.

Murcho, D. (2002). Essencialismo naturalizado. Coimbra: Angelus Novus, pp. 20-24.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A questão dos critérios valorativos

O que são os valores


Os valores refletem o que as pessoas consideram importante e significativo na sua vida. Damos importância à honestidade, à justiça, à democracia, à liberdade, à amizade ou ao conhecimento, por exemplo. Todas estas coisas têm valor para nós e queremos que elas desempenhem um papel central na nossa vida. Uma pessoa que dê valor à honestidade conduz-se com respeito pela verdade, cumpre com a palavra dada, não pratica a injustiça, etc. Um deputado que valorize a democracia não votará a favor de quaisquer propostas de lei que ponham em causa a realização de eleições livres ou os direitos das oposições. Alguém que valorize o conhecimento procurará estar informado sobre os progressos científicos, dedicará algum do seu tempo a aprofundar a sua cultura literária, etc. Num sentido muito geral, os valores refletem as nossas preferências e contribuem para caracterizar o tipo de pessoa que somos.
Os valores oferecem-nos critérios de ação. Permitem avaliar pessoas e situações, e ajudam-nos a classificar as coisas como boas ou más, desejáveis ou indesejáveis, benéficas ou prejudiciais. Em consequência, orientam as nossas decisões. Quando escolhemos a verdade em vez da mentira, estamos a usar a honestidade como critério para decidir o que fazer. Quando um pintor prefere certas cores em vez de outras, está a decidir em função de valores estéticos como a beleza e a harmonia. Honestidade e beleza são coisas a que damos importância; queremos que estejam presentes na nossa vida e que guiem as nossas decisões. Os valores dão-nos uma linha de rumo.
Além de guiarem as nossas decisões, os valores refletem-se nos juízos que fazemos sobre os mais variados aspetos da vida, desde as qualidades morais das pessoas com quem lidamos (o Luís é injusto, a Joana é corajosa), até á política do partido do governo (é preciso evitar que ganhe as próximas eleições, as medidas tomadas reforçam a justiça social, etc.). Grande parte da nossa vida consciente é passada a fazer juízos de valor sobre as mais variadas instituições e acontecimentos.
Apesar disso, os nossos juízos de valor nem sempre coincidem com os juízos de valor das outras pessoas. Diferentes pessoas podem ajuizar diferentemente sobre as mesmas coisas. É frequente haver desacordo sobre o valor estético de uma peça musical, de um quadro ou de uma obra literária. E também há desacordo sobre como avaliar moralmente o aborto ou a eutanásia. Estes desacordos distinguem as pessoas umas das outras mas também as diferentes sociedades humanas.

Atividade
Os valores são critérios de ação que usamos para avaliar situações e orientar os comportamentos (os nossos e os dos outros). Explique esta ideia.

Ruas, P. (2013). Diálogos de filosofia, vol.1. Lisboa: Texto, p. 85.

Estrutura do ato de conhecer (Filosofia 11.º ano)