domingo, 15 de dezembro de 2013

Três desafios ao livre-arbítrio

A importância do livre-arbítrio

Tomamos decisões todo o dia. O que quero de café da manhã? Que roupa devo trajar hoje? Que gravata combina melhor com este paletó? Devo fazer compras antes do jantar ou depois? Hoje, enfim, terei uma conversa com aquele colega de trabalho que venho protelando?
O fato de deliberarmos e nos vermos como seres que tomam várias decisões através do dia demonstra que nos vemos como dotados de opções reais. Dotados de escolhas. Concebemo-nos como seres livres.
Uma crença no livre-arbítrio é pressuposta por toda a moralidade tradicional. Louvamos pessoas por suas boas ações e repreendemo-las pelas más ações que cometem. Mas louvor e repreensão só fazem sentido se as pessoas tiverem escolhas reais.
Atitudes de remorso e orgulho também pressupõem o livre-arbítrio. Um sentimento de remorso está vinculado à crença de que eu poderia ter agido diferentemente. De forma semelhante, uma sensação de orgulho resulta da perceção de que eu poderia ter-me acomodado com menos, mas não o fiz.
Todos naturalmente acreditamos que somos livres. Pensamos naturalmente que o futuro está aberto à nossa vontade, em grandes e pequenas coisas. Essa é uma crença fundamental na maioria das visões do mundo.
Há poucas décadas, a psicologia era dominada por académicos que acreditavam que o livre-arbítrio é uma ilusão. Os seguidores de Freud imaginavam-nos a todos como cativos de experiências da infância remota e de impulsos inconscientes. Os partidários de Binet viam-nos a todos como prisioneiros do QI. Professores e profissionais treinados no pensamento de B. F. Skinner modelavam o comportamento humano pelo dos ratos que podiam ser manipulados através de mecanismos físicos de reforço positivo e negativo. Não havia lugar na psicologia académica da época para a verdadeira liberdade. Essa é uma das razões por que, após um curso de graduação em psicologia, decidi (livremente) abandonar o laboratório definitivamente e voltar minha atenção ao que os filósofos tinham para dizer.
Descobri que um dos grandes psicólogos e filósofos do século XIX, William James, como um conjunto de grandes pensadores antes dele, acreditava firmemente no livre-arbítrio. Ele estava convencido de que podemos modificar nossas vidas mudando nossos pensamentos. Os discípulos de Freud, Binet e Skinner sem dúvida conseguem identificar e diagnosticar problemas de conduta e personalidade humanos. Mas eles têm um histórico notoriamente fraco em realmente ajudarem as pessoas. Já um seguidor de James pode fazer diferença nas vidas de seres humanos reais.
Nossa crença no livre-arbítrio é importante. Ela é poderosa. Bem no fundo, queremos acreditar que podemos fazer diferença nesta vida, que podemos superar obstáculos e, criativamente, deixar nossa marca neste mundo. Não podemos acreditar em criatividade ou responsabilidade sem pressupor a liberdade.
A crença humana natural no livre-arbítrio tem sido ameaçada através dos séculos de pelo menos três direções. 

Previsão do futuro: O desafio teológico à liberdade

Se alguém consegue literalmente prever o futuro, este já deve de algum modo estar antecipadamente traçado. Ele já está nas cartas. Não há nada que possamos fazer para o mudar. Observe que não estou falando de alguém que meramente vislumbra uma possibilidade futura, mas que literalmente vê antecipadamente o que de fato ocorrerá.
Minha ideia aqui é simples. Se há maneiras de sabermos o que não compreendemos plenamente, e se algumas delas nos põem em contato com os detalhes de um futuro ainda por vir, isso pode criar um desafio à nossa crença no livre-arbítrio.
Para esclarecer exatamente como funciona esse desafio, usarei o exemplo de Deus. Suponha que haja um ser perfeito que infalivelmente saiba o futuro e possa comunicar aspetos desse futuro a seres humanos para fins especiais. Se um Deus absolutamente perfeito sabe o futuro, presume-se que o saiba perfeitamente e, portanto, completamente. Um Deus perfeito não pode estar errado. Assim, se ele sabe, por exemplo, que você se mudará para o outro extremo do país daqui a um ano, por mais que você deseje permanecer, estará pegando a estrada. Você não tem escolha. Você não pode provar que ele está errado. Igualmente, se ele sabe que você permanecerá na casa e emprego atuais pelos próximos dez anos, você está preso a eles, queira ou não. Em ambos os casos, você não tem as opções, ou a liberdade, que normalmente supõe ter. Nem eu.
A presciência divina pareceria então um sério desafio à liberdade humana. Mesmo a presciência humana, se for realmente conhecimento. Se o futuro já está, de algum modo, metafisicamente "ali" para ser conhecido, ele está fixado, não importa o que queiramos ou tentemos fazer, e não temos liberdade para torná-lo diferente. Existe resposta para esse desafio?

O que será, será: O desafio lógico à liberdade

Há uma famosa lei da lógica denominada "Lei do Terceiro Excluído". Em termos simples, ela diz que, para toda a proposição P, ou P é verdadeiro, ou não-P é verdadeiro. Não há terceira alternativa. Assim, ou existe um Deus, ou não é o caso de que existe um Deus. Ou é possível sobreviver à morte corporal, ou não é possível sobreviver à morte corporal. Essa lei da lógica governa todas as proposições.
Outra famosa lei da lógica denomina-se "Lei da Não-Contradição". Ela diz que, para toda a proposição P, não é o caso que P e não-P sejam verdadeiras. Não é o caso que existe e não existe uma ordem moral no universo. Ou ela existe, ou não existe. Não são possíveis ambas as coisas.
É fascinante, e um pouco preocupante, ver o que acontece quando aplicamos a Lei do Terceiro Excluído e, depois, a Lei da Não-Contradição, a uma proposição no tempo futuro. Seja P a proposição:
Você comerá uma maçã amanhã no almoço.
De acordo com a Lei do Terceiro Excluído, ou é verdadeiro que você comerá uma maçã amanhã no almoço, ou é verdadeiro que você não comerá uma maçã amanhã no almoço. Mas então podemos lançar o seguinte argumento:
  • Ou você comerá uma maçã amanhã no almoço, ou não comerá. (Terceiro Excluído.)
  • Se você vai comer uma maçã amanhã no almoço, nada que você fizer entre agora e então o impedirá de comer aquela maçã no almoço. (Segue-se da Não-Contradição.)
  • Se você não vai comer uma maçã amanhã no almoço, qualquer esforço que você fizer entre agora e então para comer tal maçã será, literalmente, infrutífero. (Da Não-Contradição.) Portanto,
  • Você não possui agora duas opções igualmente disponíveis de comer ou não comer aquela maçã. (Por definição do que é uma opção.) Logo,
  • Você não é realmente livre quanto a se comerá ou não uma maçã amanhã no almoço. (Pela definição de liberdade como requerendo opções reais.)

Esse mesmo raciocínio aplicar-se-á a qualquer proposição no tempo futuro. Assim, parece seguir-se que você não é livre a respeito de nada no futuro. Argh! Isso é o que os filósofos costumam denominar Problema do Fatalismo Lógico.
Mas como sabemos que as leis da lógica realmente são verdadeiras? É impossível, literalmente incoerente, cogitar no inverso e supor que na verdade não são. Não conseguimos sequer pensar sem pressupor as leis da lógica. Elas não podem ser violadas por uma proposição num tempo verbal específico. Assim, parece que, mesmo para alguém que não acredite em Deus ou na presciência humana, um problema ameaça a nossa crença comum na liberdade humana. Existe solução para ele? Os filósofos têm formulado essa pergunta há séculos. Talvez tenhamos uma resposta.

Robôs e títeres cósmicos: O desafio científico à liberdade

Desde pelo menos a época de Sir Isaac Newton, cientistas e filósofos impressionados pela marcha da ciência oferecem um quadro do comportamento humano nada promissor para a crença na liberdade. Toda a natureza é vista por eles como um imenso mecanismo, com os seres humanos servindo como meras peças dessa gigantesca máquina. Nessa visão, vivemos e pensamos de acordo com as mesmas leis e causas que movem todos os outros componentes físicos do mecanismo universal.
De acordo com esses pensadores, tudo o que acontece na natureza tem uma causa. Suponha então um evento que, no contexto, seja claramente uma ação humana do tipo que costumamos considerar livre. Como uma ocorrência neste universo, ele tem uma causa. Mas essa causa, por sua vez, tem uma causa. E tal causa, por sua vez, tem outra causa etc. etc.
Como resultado dessa visão científica do mundo, obtemos o seguinte quadro:
Condições naturais fora de nosso controlo
causam
Estados corporais e cerebrais internos,
que causam
Ações mentais e físicas
Mas se isso for verdade, em última análise você não passa de um conduto para cadeias de causação natural que retrocedem ao passado remoto antes de seu nascimento e continuam futuro adentro após sua morte. Você não é causa originária de nada. Nada do que você faça se deve apenas às suas escolhas ou pensamentos. Você é um títere da natureza. Você não passa de um robô programado por um cosmos insensível.
Os psicólogos falam na hereditariedade e meio ambiente como responsáveis por tudo o que você faz. Mas se eles são responsáveis, você não é? Segue-se que você pode fazer o que quer, irresponsavelmente? De jeito nenhum. Segue-se apenas que você fará o que aprouver à natureza e educação. Mas nesse quadro, a educação se revela apenas um véu ilusório sobre uma natureza cruel e insensível. Você tem o que a natureza lhe dá. Nada mais e nada menos.
Onde está a liberdade humana nesse quadro? Ela não existe. É uma de nossas maiores ilusões. A crença natural no livre-arbítrio não passa de uma monstruosa falsidade. Mas não devemos condenar-nos por nos apegarmos a essa ilusão até que a ciência nos corrigisse. Não havia como impedi-lo. 
Esse raciocínio denomina-se Desafio do Determinismo Científico. De acordo com os deterministas, somos determinados em todos os aspetos a fazermos tudo o que chegamos a fazer.
Esse é outro sério desafio à liberdade humana. É a razão pela qual um dos primeiros cientistas modernos, Pierre Laplace (1749-1827), certa vez afirmou que, se fosse possível fornecer a um supergénio uma descrição total do universo em qualquer dado ponto do tempo, ele seria capaz de prever com certeza tudo que ocorreria no futuro em relação àquele momento e retroceder com certeza para tudo que jamais aconteceu antes daquele estado descrito. Ele acreditava que a natureza era uma máquina perfeita, e os seres humanos não passavam de engrenagens na máquina, iludidos na crença de serem livres.
O determinismo está certo? A ciência condena-nos a um estado robótico, apesar de nossos sentimentos subjetivos contrários?

Morris, T. (2000). Filosofia para dummies. Rio de Janeiro: Editora Campus, pp. 117-126 (adaptado).