António Padrão
Ciência e filosofia: uma origem comum
A 14 de março de 2018, morreu Stephen Hawking, o mais conhecido cientista
da atualidade e um dos mais extraordinários cientistas de sempre. A 14 de março
de 1879 (139 anos antes da morte de Stephen Hawking), nasceu, em Ulm, na
Alemanha, Albert Einstein, autor da Teoria da Relatividade e Prémio Nobel da
Física, em 1921. A 8 de janeiro de 1642, 300 anos antes do nascimento de
Stephen Hawking, morreu Galileu Galilei — o pai da ciência moderna.
Stephen Hawking (1942-2018), Albert Einstein (1879-1955) e Galileu Galilei
(1564-1642) são três dos mais conhecidos herdeiros de uma tradição que teve o
seu início no séc. VI a.C., na Grécia antiga, mais precisamente na cidade de
Mileto, na Jónia — uma colónia grega na Ásia Menor —, com pensadores como Tales
(c.625-545 a.C.), Anaximandro (c.610-547 a.C), Anaxímenes (fl. 546-525 a.C.) —
que criaram a primeira escola filosófica grega (a Escola de Mileto) — e outros que se lhes seguiram.
A
partir do século VI a.C., os elementos de religião, ciência e filosofia
fermentam juntos num caldeirão cultural. Com a nossa distância temporal, os
filósofos, os cientistas e os teólogos podem todos olhar para trás, para estes
primeiros pensadores, e considerá-los seus antepassados intelectuais. (Kenny,
2010, p. 21)
A ciência, a filosofia e o pensamento racional que as caracteriza
surgiram, pois, no século VI a.C., na Grécia (apesar de o próprio pensamento
grego ter sofrido influências egípcias e de alguns autores indicarem que a
China e, sobretudo, a Índia tinham especulações que mereciam ser consideradas
filosóficas, apresentamos aqui a tradição ocidental iniciada na cultura grega).
É verdade que o pensamento racional não se apresentou logo em toda a sua
clareza e autonomia, não havendo uma distinção clara entre religião, ciência e
filosofia. Mas o que fizeram estes primeiros pensadores para que, hoje,
filósofos e cientistas os considerem seus antepassados intelectuais?
É aos pensadores jónicos (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) que se devem
as primeiras especulações racionais acerca da origem de todas as coisas. E o
que distingue estas especulações das fantasias dos mitos é a tentativa de dar
explicações da realidade com base na razão. Ao contrário dos que tudo
procuravam explicar através dos mitos, os primeiros filósofos procuraram
explicar o que é a natureza, o que são as cosias, qual a substância de que
todas as coisas são feitas, como surgiu, do estado primitivo das coisas, este
mundo multiforme e ordenado (Cornford, 1981, p. 258).
O interesse dos filósofos jónicos foi orientado para a observação e interpretação dos fenómenos naturais, razão
pela qual se chama a estes primeiros filósofos fisiólogos, quer dizer, os que estudam a physis, a natureza. A observação direta do mundo visível é o ponto
de partida para a elaboração racional das suas teorias. Mesmo que saibamos,
hoje, que as suas teorias estavam erradas, a verdade é que vemos, desde os
jónicos,
manifestarem-se
já certos traços essenciais do futuro pensamento científico: desembaraçar o
espírito de todos os preconceitos, de todas as teorias pré-concebidas,
religiosas ou não, de tudo o que impede o acesso [ao conhecimento], para o
tornar capaz de acolher os dados da experiência; só é verdade aquilo que se
demonstra, verifica ou prova; não há fenómenos sem causa, explicar é encontrar
a causa; o acaso e o sobrenatural não são explicações; um fenómeno natural
deriva sempre de outro fenómeno natural; existe, por fim, uma ordem fundamental
da natureza, um «cosmos» (palavra que
quer dizer «ordem»), regido por princípios constantes, por leis. (Revel, 1971,
p. 23)
Os quatro elementos: terra, água, ar e fogo
Afinal, que resposta deram os primeiros filósofos ao problema de saber de
que são feitas as coisas? Qual a substância imutável subjacente a todas as
mudanças do mundo natural?
Tales de Mileto, o pai fundador da filosofia grega e um dos Sete Sábios
da Grécia, pensava que o princípio de todas as coisas, a substância primeira da
qual todas as outras seriam apenas modificações, é a água. Talvez Tales tenha pensado que tudo provinha da água, por ter
observado que todos os animais e plantas precisam de água para viver ou pelo
facto de a vida animal principiar no fluido seminal. Pelo menos, é esta a
conjectura de Aristóteles sobre as razões de Tales para considerar que a
substância universal de que as coisas são feitas é a água. Até a terra, pensava
Tales, assentava sobre a água, como um tronco a flutuar.
Sucessor de Tales na direção da Escola de Mileto, Anaximandro pensava que
a substância original não podia ser nenhum dos quatro elementos (terra, água,
ar e fogo), mas uma substância indeterminada subjacente aos quatro elementos. O
princípio de todas as coisas é o apeiron — palavra que significa
infinito, não no sentido matemático, mas no sentido de ilimitado ou
indeterminado. Este princípio constituía uma espécie de unidade indistinta, da
qual se engendram, por um processo de separação
dos contrários, todas as coisas. Os primeiros contrários a surgir da
matéria eterna indeterminada foram o calor e o frio, a partir dos quais se
desenvolveram o fogo e a terra, que estão na origem do nosso universo. O apeiron é uma entidade imortal e
incorruptível. Com o tempo, todas as coisas regressarão a essa unidade, a essa
indeterminação, donde saíram.
Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, considerou o apeiron do seu mestre um princípio demasiado abstrato e defendeu
que o primeiro princípio da natureza, e aquilo sobre o qual a Terra repousa, é
o ar. É do ar que nascem todas as
coisas, por condensação e rarefação.
No seu
estado estável o ar é invisível, mas quando é deslocado e condensado, torna-se
primeiro vento, depois nuvem e a seguir água, e, por fim, a água condensada
transforma-se em lama e pedra. O ar rarefeito torna-se fogo, completando assim
a gama de elementos. Desta forma, a
rarefacção e a condensação conseguem conjurar tudo a partir do ar subjacente
[...]. Para corroborar esta afirmação, Anaxímenes fazia apelo à experiência e,
na verdade, à experimentação — experimentação que o leitor poderá facilmente
realizar. Sopre na mão, primeiro com os lábios juntos e depois com a boca
aberta — da primeira vez, o ar será frio; da segunda, quente. Isto, afirmava
Anaxímenes, demonstra a relação entre densidade e temperatura [...]. (Kenny,
2010, p. 26)
A seguir aos filósofos da Escola de Mileto, os filósofos mais importantes
são os da Escola Pitagórica, cujo fundador foi Pitágoras (c.570-495 a.C.),
natural de Samos, uma ilha ao largo da costa da Ásia Menor. É a Pitágoras que
se atribui a invenção da palavra «filósofo», isto é, amante da sabedoria, em
oposição ao sábio (sofos). Pitágoras é conhecido, sobretudo, pelo teorema que
tem o seu nome (apesar de ser muito duvidoso que tenha sido o primeiro a
descobri-lo), segundo o qual o quadrado da hipotenusa de um triângulo retângulo
é igual em área à soma dos quadrados dos outros dois lados.
Para os pitagóricos, o número
é o princípio de todas as coisas. Os
números são os elementos diretamente representativos da realidade, ou melhor,
das formas geométricas da realidade. Aquilo que faz com que as coisas sejam o
que são é a sua estrutura geométrica ou forma. Estamos, pois, perante um
princípio formal e já não material, como para os milésios.
Em meados do século VI a.C., a Jónia foi invadida pelos persas, tendo a
cidade de Mileto sido destruída em 494 a.C. — o que obrigou a maior parte dos
filósofos de origem jónica a mudarem-se para outras regiões do mundo grego:
Siracusa, Agrigento, Crotona, Eleia. Com a morte de Pitágoras e a destruição de
Mileto, termina a primeira fase do pensamento pré-socrático.
Alguns dos filósofos seguintes continuam a propor uma cosmologia e a
procurar os elementos básicos que estão na origem de todas as coisas. Para Xenófanes
de Cólofon (c.570-470 a.C), há dois elementos (terra e água); para Heraclito
(c.535-475 a.C.), o elemento é o fogo
(às vezes, também refere a terra e a água) e para Parménines (c.530-460 a.C),
os elementos eram «formas». Anaxágoras (c.500-428 a.C) falou de um número
infinito (ou indefinido) de elementos qualitativamente distintos (as
homeomerias) e Demócrito (c.460-370 a.C.) de um número infinito de elementos
(os átomos), mas é a Empédocles (c.492-432 a.C.) que se deve a formulação mais
precisa da chamada «doutrina dos quatro
elementos»: fogo, água, ar e terra (Mora, 1981,
p. 909).
A filosofia da natureza de Empédocles constitui uma síntese do pensamento
dos filósofos jónicos (Kenny, 2010). Empédocles pensa que o fogo, a água, o ar
e a terra são as quatro substâncias, ou quatro raízes, que estão na origem de
tudo quanto existe no universo. Estas substâncias, que existem desde sempre,
combinam-se entre si pelo efeito de duas forças (o Amor e a Discórdia).
Empédocles ficou ainda conhecido por ter apresentado uma teoria da
evolução através da sobrevivência do mais forte, o que levou Darwin a fazer-lhe
um cumprimento n’A Origem das Espécies
por «insinuar o princípio da seleção natural» (citado por Kenny, 2010, p. 40).
A doutrina dos quatro elementos exerceu uma grande influência na
Antiguidade, na Idade Média e mesmo na época moderna. Filósofos e cientistas
atribuíram-lhe um papel fundamental na física e na química, até ao século XVII
— o século em que Robert Boyle (1627-1691), um físico e químico irlandês,
considerado um dos fundadores da química, refutou a doutrina dos quatro
elementos.
Apesar de ter sido refutada, a doutrina dos quatro elementos está na base
de uma ideia fundamental:
Acreditar que podemos compreender
a natureza última do universo se compreendermos os seus elementos mais simples
é a base da grande aventura do conhecimento. Como todas as instituições, pode
ser adequada ou inadequadamente desenvolvida, como se vê no contraste entre a
química e a alquimia. (Murcho, 2016, pp. 255-256)
O quinto elemento: o éter
Aos quatro elementos de Empédocles, Aristóteles (384-322 a.C.) acrescenta
um quinto: o éter (quinta-essência). Para Aristóteles, «a Terra é circundada
por camadas de água, ar, fogo e, na parte mais externa, por algumas abóbadas
que suportam os corpos celestes e consistem de um quinto elemento chamado
‘éter’» (Mautner, 2010, p.275). Os corpos terrestres eram constituídos pelos
quatro elementos, mas os corpos celestes — os astros imortais — eram constituídos
pelo éter.
O éter viria a desempenhar um papel importante na física clássica, uma
vez que «seria o meio através do qual as ondas electromagnéticas se propagam,
tal como o som se propaga através do ar.» (Hawking e Mlodinow, 2011, p. 98). No
século XIX, a existência do éter era ainda dada como certa. Por exemplo, em
1884, Sir William Thomson, um famoso físico, mais conhecido como Lorde Kelvin,
afirmou que o éter era «a única substância na dinâmica sobre cuja existência
temos a certeza. Se há coisa de que estamos seguros é da realidade e
substancialidade do éter luminífero» (citado por Hawking e Mlodinow, 2011, p.
101). Alguns anos mais tarde, a teoria da relatividade de Einstein viria a
tornar obsoleta a hipótese da existência do éter. Afinal, o éter não existe nem
precisa de existir, ao contrário do que tinham postulado os cientistas, no
século XIX.
Razão
Apesar de reconhecerem a abordagem racional e a importância da ciência
jónica na história das ideias humanas, Hawking e Mlodinow (2011, p. 25) não
deixam de assinalar que por «mais perspicazes que algumas especulações dos
antigos gregos sobre a Natureza tenham sido, a maior parte das suas ideias não
poderia ser validada como ciência nos tempos modernos», com o que,
evidentemente, concordamos. Os primeiros pensadores gregos não eram verdadeiros
cientistas nem verdadeiros filósofos, e as suas explicações racionais
misturam-se com especulações míticas, místicas e religiosas. Por exemplo,
Tales, para além de ter afirmado que a água é o primeiro princípio de todas as
coisas, também afirmou que todas as coisas estão cheias de deuses; e terá
comemorado a descoberta do método para inscrever um triângulo retângulo num
círculo com a oferta de um boi aos deuses. Pitágoras, apesar de ser conhecido
como matemático, teve uma atividade principalmente religiosa, relacionada com
os mistérios órficos, acreditando que a alma renascia noutros corpos
(metempsicose). E Empédocles, influenciado por Pitágoras, também acreditava que
as almas estão condenadas ao ciclo do nascimento e do renascimento,
reencarnando como plantas, animais e seres humanos.
A razão não surgiu das trevas de um momento para o outro; pelo contrário,
pensamento racional, pensamento mítico e pensamento religioso
interpenetraram-se nas especulações dos primeiros filósofos.
Na Grécia antiga
descobriu-se — esse foi um dos maiores avanços da humanidade — que as disputas
entre humanos a respeito de certos assuntos se podiam dirimir com base numa boa
discussão, que consiste na oferta e aceitação de argumentos e contra-argumentos,
no apuramento das melhores razões de acordo com regras mutuamente aceites e na
chegada a uma conclusão que é partilhada e transmitida a outros. [...] Foi, em
suma, o alvorecer da racionalidade, pese embora esta ter continuado a coexistir
com mitologias, superstições e medos. Começou o que podemos chamar idade da
razão. (Fiolhais, 2002, pp. 38-39)
É verdade que a razão nem sempre é bem usada e enfrenta vários inimigos:
a religião, o relativismo, o «pós-modernismo», a «pós-verdade», mas — felizmente
— a «maior parte da ciência e da filosofia encontra-se do lado que afirma que a
razão, apesar das suas imperfeições e falibilidades, fornece uma norma à qual
os pontos de vista concorrentes têm de se submeter para apreciação.» (Grayling,
2002, p. 182)
Nota
Agradeço os
comentários de Desidério Murcho e de Jorge Mesquita, que me ajudaram a
esclarecer melhor alguns aspetos.
Referências bibliográficas
Cornford, F. M. (1981). Principium
Sapientiæ: As Origens do Pensamento Filosófico Grego (2.ª ed). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Fiolhais, C. (2002). A Coisa Mais Preciosa que Temos. Lisboa:
Gradiva.
Grayling, A.C. (2002). O
Significado das Coisas. Lisboa: Gradiva.
Hawking, S. e Mlodinow, L. (2011). O
Grande Desígnio. Lisboa: Gradiva.
Kenny, A. (2010). Nova História da
Filosofia Ocidental, Vol. 1: Filosofia Antiga. Lisboa: Gradiva.
Mautner, T.
(2010). Éter. In Dicionário de Filosofia.
Lisboa: Edições 70.
Mora, J.F. (1981). Elemento. In Diccionário
de Filosofia, 2 (3.ª ed.). Barcelona: Alianza Editorial.
Murcho, D. (2016). Todos os Sonhos
do Mundo e Outros Ensaios. Lisboa: Edições 70.
Revel, J-F. (1971). História da
Filosofia Ocidental, Vol. 1. Lisboa: Moraes Editores.
Originalmente publicado na revista
defacto, n.º 26, maio 2018 (revista da Escola Secundária de Alberto Sampaio).