terça-feira, 25 de junho de 2019

O melhor dos mundos possíveis?

António Padrão



«Seja qual for a maneira como Deus criou o mundo, ela teria sido sempre regular e com uma certa ordem geral. Deus, porém, escolheu a mais perfeita, ou seja, aquela que é ao mesmo tempo a mais simples em hipóteses e a mais rica em fenómenos.»
Gottfried Leibniz (1686), Discurso de Metafísica, § 6.
Mundos possíveis
Imagine, caro leitor, que o autor deste texto que está agora mesmo a ler não é calvo (para quem não sabe, o autor deste texto é mesmo calvo). Imagine que a Lua não existe. Imagine que não existem buracos negros. Imagine que, em 2014, António José Seguro tinha vencido as primárias do PS e que António Costa não tinha chegado a primeiro ministro. Imagine que Luís Montenegro (que quis fazer a Rui Rio o que António Costa fez a António José Seguro – apesar de afirmar o contrário) tinha conseguido vencer a disputa pela liderança do PSD e que era, agora, presidente do PSD. Imagine que António Costa, quando constituiu o governo, tinha nomeado outro ministro da Educação que percebesse alguma coisa de educação. Imagine que todos os alunos são mesmo estudantes. Imagine que não existe mal no mundo. Agora, imagine que o mundo é exatamente como é, exceto no que respeita à primeira coisa que imaginou: acabou de conceber um mundo em que o autor destas linhas não é calvo, não havendo mais nenhuma diferença em tudo o resto. Para cada uma das outras coisas que imaginou acima, é possível imaginar um mundo que só difere do atual naquilo que imaginou. Também é possível imaginar um mundo que difere do atual em duas, ou três, ou quatro, ou mesmo todas as coisas que imaginou antes. Espero que esteja a ver, caro leitor, aonde é que este exercício de imaginação nos leva: a uma infinidade de mundos possíveis.
Os filósofos utilizam a expressão «mundo possível» para se referirem a um modo como as coisas podem ser. E para se referirem ao modo como as coisas efetivamente são, utilizam a expressão «mundo atual» ou «mundo efetivo». É claro que o mundo atual, ou mundo efetivo, é também um dos mundos possíveis. «Atual», neste contexto, não significa «do tempo presente», mas «que existe em ato».
A ideia de mundos possíveis alternativos tem sido explorada por vários filósofos e por escritores de ficção científica, ou de romances, entre outros.
O melhor dos mundos possíveis
Será que vivemos no melhor dos mundos? Leibniz (1646-1716) – filósofo, matemático e erudito alemão – pensava que sim: Deus criou o melhor de todos os mundos possíveis. Deus tinha à sua escolha uma infinidade de hipóteses de criação do mundo e decidiu dar existência a este nosso mundo. E não foi o único a pensar tal coisa. Antes dele, Abelardo (1079-1142) defendeu que Deus não poderia ter feito um mundo melhor do que aquele que fez (Kenny, 2011). E Malebranche (1638-1715) sustentou que o mundo em que vivemos, criado por Deus, é apenas um entre os muitos mundos possíveis que Deus poderia ter criado, diferindo destes pela grande simplicidade das suas leis (Mautner, 2010).
O que há de comum nestas três posições? A ideia de que foi Deus quem criou o mundo.
Mas será verdade que Deus criou o mundo? Para ter criado o mundo, Deus tem de existir. Para Leibniz, Deus é o único ser necessariamente existente. Mas será verdade que Deus existe? Temos boas razões para acreditar na Sua existência? E será o conceito de Deus coerente? Estas questões exemplificam o tipo de problemas tratados em Filosofia da Religião. A Filosofia da Religião é uma área da filosofia que reflete sobre os conceitos e as crenças fundamentais das religiões: sobre os conceitos das religiões (por exemplo, os conceitos de Deus, de fé, de milagre e de omnipotência), procura compreender o seu significado e analisar a sua coerência; e sobre as crenças religiosas (por exemplo, as crenças de que Deus existe, de que há vida depois da morte, de que Deus sabe tudo a nosso respeito – incluindo o que vamos fazer no futuro –, de que a existência do mal é consistente com a perfeição de Deus), procura avaliar as justificações que podemos ter para elas.
Serão os atributos do Deus teísta consistentes?
Façamos de filósofos da religião e examinemos criticamente o conceito de Deus. Quando Abelardo, Malebranche ou Leibniz dizem que Deus criou o mundo, que ideia de Deus têm em mente? Quando dizemos que Deus existe, ou que Deus não existe, qual é o conceito de Deus que temos em mente? (Repare, caro leitor, que não podemos deixar de responder a esta questão, mesmo que digamos que não acreditamos em Deus. Se não acreditamos em algo, temos que ter uma ideia desse algo em relação ao qual dizemos que não acreditamos.)
O conceito de Deus que Abelardo, Malebranche ou Leibniz tinham em mente é o conceito de Deus teísta, isto é, um ser com os seguintes atributos: omnipotente (pode fazer tudo), omnisciente (sabe tudo), sumamente bom (moralmente perfeito), criador (fez o universo) e é uma pessoa (não é uma força da natureza, é um agente como nós).
Será o conceito de Deus teísta coerente? Algum dos atributos de Deus é em si incoerente? Poderá existir um ser com estes atributos? Serão os atributos do Deus teísta consistentes? Com esta última pergunta, o que queremos saber é se as seguintes proposições podem ser simultaneamente verdadeiras: Deus é omnipotente; Deus é omnisciente; Deus é sumamente bom; Deus é criador; Deus é uma pessoa. Se concluirmos que estas proposições não podem ser simultaneamente verdadeiras, então isso significa que os atributos do Deus teísta são inconsistentes; logo, não pode existir um ser com aqueles atributos. Logo, Deus será impossível. Mas, se conseguirmos mostrar que os atributos de Deus são consistentes, no sentido em que definimos anteriormente a consistência, daí não se segue que o Deus teísta exista mesmo; segue‑se apenas que pode existir. Vejamos um argumento que procura mostrar que um atributo de Deus é incoerente, e outro que procura mostrar que a combinação de atributos é inconsistente (para estes e outros argumentos, ver, por exemplo, Faria (2018), e Rowe (2011)).
O «paradoxo da pedra», como é conhecido, é um argumento que visa mostrar que há algo que Deus não pode fazer; portanto, não é omnipotente. O argumento pode ser apresentado assim:
Ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que Ele próprio seja incapaz de a levantar ou não tem esse poder. Se tem o poder de criar tal pedra, então há algo que Deus não pode fazer: levantar a pedra que criou. Se não tem o poder de criar tal pedra, então há também algo que Ele não pode fazer: criar uma pedra tão pesada que Ele próprio seja incapaz de a levantar. Em qualquer dos casos, há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é omnipotente.
Vejamos agora um argumento que procura mostrar que a combinação de atributos divinos é inconsistente. Com este argumento, formulado por Faria (2018), citando Morriston (2001), pretende-se defender que os atributos da omnipotência e da perfeição moral são inconsistentes.
Suponha-se que há um Deus que é simultaneamente omnipotente e moralmente perfeito. Um ser omnipotente pode fazer qualquer coisa que seja logicamente possível. Ter a propriedade de ser moralmente perfeito implica ser impecável (ou ser incapaz de proceder de forma moralmente errada) e, por isso, há coisas que um ser moralmente perfeito não pode fazer, como assassinar, mentir, quebrar promessas, entre outras. Logo, há um Deus que simultaneamente pode fazer tudo o que é logicamente possível e simultaneamente não pode fazer tudo o que é logicamente possível. Logo, não há um Deus que é simultaneamente omnipotente e moralmente perfeito.
Serão estes bons argumentos? Serão argumentos sólidos? Se forem sólidos, isto é, válidos e com premissas verdadeiras, então, caro leitor, como seres racionais, só nos resta aceitar que o Deus teísta não existe nem poderia existir. Deixo ao leitor o desafio de mostrar onde está a falha destes argumentos, mas digo-lhe já que não está na validade. Portanto, se pensa que as conclusões dos argumentos são falsas, tem que mostrar que pelo menos uma das premissas de cada um dos argumentos é falsa.
O problema do mal
Acredito que o leitor tenha sido bem-sucedido na resposta ao desafio que lhe lancei, isto é, que foi capaz de mostrar que afinal aqueles dois argumentos não provam que o Deus teísta não possa existir. Mas se não foi capaz, pode ler em Rowe (2011) e em Faria (2018) uma discussão daqueles argumentos.
Regressemos a Leibniz, que, como vimos, defende que Deus não só criou o mundo, como criou livremente o melhor dos mundos possíveis. E por que razão criou Deus o melhor dos mundos possíveis e não qualquer outro?
Leibniz sublinha que o pensamento de Deus contém uma infinidade de mundos possíveis […]. Todos estes mundos são compostos de substâncias e acidentes e têm uma certa tendência para existir. Mas apenas o melhor deles, i.e., a composição mais perfeita, é efetivado. A competição entre mundos possíveis é decidida pelo princípio do melhor, princípio que favorece o mundo que melhor realiza o princípio minimax, i.e., um mundo com um mínimo de regras ou leis e um máximo de estados de coisas, ou, como Leibniz também diz, um mínimo de causas e um máximo de efeitos, ou um mínimo de meios e um máximo de fins. (Mautner, 2010, pp. 442-443)
Sendo Deus um agente racional, omnisciente e infinitamente bom, não poderia ter deixado de escolher o melhor. Além disso, Deus criou um mundo com uma harmonia preestabelecida.
Mas – objetará o leitor – como pode ser este o melhor dos mundos possíveis, se o autor deste texto nem sequer pode candidatar-se a guarda-florestal, por ser careca no mundo atual, ao contrário do que aconteceria naquele outro mundo possível que imaginou, logo no início do texto, que era em tudo igual a este, exceto na calvície do autor deste texto? (Sim, caro leitor, ambos acabámos de ouvir nos noticiários que o aviso de abertura de procedimento concursal para o ingresso na carreira de guarda-florestal, recentemente publicado no Diário da República, impede os carecas de se candidatarem. Ora, ambos pensamos que um mundo em que o autor deste texto possa fazer tudo o que o que pode fazer no mundo atual, e ainda por cima possa candidatar-se a guarda-florestal, é melhor do que o mundo atual). E então, continuará o leitor, aquele outro mundo possível que imaginámos, que difere do atual apenas por ter outro ministro da Educação que percebe alguma coisa de educação, não será melhor do que o atual? (Não é plausível pensar que é melhor ter alguém a decidir sobre assuntos de que é conhecedor do que alguém que não percebe nada desses assuntos?)
Parece que com estes exemplos embaraçámos Leibniz, mas não. O facto de o nosso mundo ser o melhor dos mundos possíveis não significa que seja o melhor para cada indivíduo que nele existe. Pode haver um mundo possível que seja o melhor para um indivíduo em particular (por exemplo, o mundo em que o autor deste texto não seja calvo) ou para um conjunto de indivíduos (por exemplo, para os alunos, pais e professores portugueses, o mundo em que o ministro da Educação perceba alguma coisa de educação), mas, globalmente, o mundo não seria melhor. Para Leibniz, seria impossível tornar este mundo melhor, melhorando ligeiramente qualquer substância, ou conjunto de substâncias e qualidades, pois isso iria perturbar o equilíbrio do mundo e piorar outra coisa qualquer. Ou seja: se tivéssemos um ministro da Educação melhor, isso iria, certamente, impedir que outros países tivessem bons ministros da Educação, de modo que, globalmente, o mundo seria pior.
Talvez o leitor tenha pensado numa objeção mais forte: como pode ser este o melhor dos mundos possíveis, se existe nele tanto mal? Terramotos, epidemias, doenças, homicídios, guerras, genocídios, pedofilia, fome. Como é possível que exista mal no melhor dos mundos possíveis? Como é possível que exista mal num mundo criado por Deus? Deste modo, estará o leitor a formular o problema do mal – uma das mais fortes objeções à existência de Deus.
Será que esta objeção embaraçaria Leibniz? Bem, Leibniz refletiu sobre o problema do mal, escrevendo até uma obra – Ensaios de Teodiceia – para defender a justiça divina perante os males do mundo e justificar as atividades de Deus.
Pode ser que voltemos a Leibniz na próxima defacto. Até lá, deixo ao leitor o desafio de responder ao problema do mal, a saber: será a existência de Deus compatível com a existência de mal no mundo?

Referências bibliográficas
Faria, D. (2018). Deus em Análise – Uma Introdução à Filosofia da Religião. Edição de Autor.
Kenny, A. (2011). Ascensão da Filosofia Moderna: Nova História da Filosofia Ocidental, vol. 3. Lisboa: Gradiva.
Mautner, T. (2010). Dicionário de Filosofia. Lisboa: Edições 70.
Rowe, W. L. (2011). Introdução à Filosofia da Religião. Lisboa: Babel.

Originalmente publicado na revista defacto, n.º 27, maio 2019 (revista da Escola Secundária de Alberto Sampaio).

sábado, 27 de abril de 2019

A existência de Deus

 Textos e problemas de filosofiaSerá que Deus existe? Muitas pessoas são educadas de forma religiosa, nunca colocando em causa a sua fé. Outras são educadas de forma não religiosa, nunca colocando em causa a sua ausência de fé. Mas, independentemente do modo como fomos educados, haverá boas razões para pensar que Deus existe ou não? Recorrendo exclusivamente ao pensamento e aos sentidos, não nos apoiando por isso na tradição e nos livros considerados sagrados, poderemos provar que Deus existe? Por prova não se entende, neste contexto, uma prova científica ou matemática; o que está em causa é saber se há bons argumentos a favor da existência de Deus — argumentos que qualquer pessoa que os avalie de forma imparcial estará disposta a aceitar, independentemente do modo como foi educada.

Das diferentes concepções de Deus, a filosofia tem-se ocupado na sua maior parte da concepção teísta de Deus.

n O teísmo é a crença de que o Deus teísta existe.
n O Deus teísta é sumamente bom, omnipotente, omnisciente, criador e uma pessoa.

O teísmo defende que Deus é moralmente perfeito, todo-poderoso, tem conhecimento de tudo, criou tudo o que existe e não é uma força impessoal, mas sim uma pessoa não humana.

n O ateísmo é a crença de que Deus não existe.
n O agnosticismo é a suspensão da crença quanto à existência de Deus.

n A  é uma crença religiosa.

Na discussão sobre a existência de Deus, foram apresentadas ao longo dos tempos diferentes versões dos seguintes tipos de argumentos:
1. Argumentos cosmológicos: 1) Baseados na ideia de que tem de haver uma só causa para a totalidade do universo; 2) baseados na contingência do mundo.
2. Argumentos ontológicos: Baseiam-se na ideia de que a existência de Deus se segue da sua definição.
3. Argumentos do desígnio: 1) Baseados na ordem do mundo (nomológicos); baseados na adequação das coisas a fins (teleológicos).
4. Argumentos morais: Baseiam-se na ideia de que a existência de Deus é uma exigência da moralidade.
5. Argumentos baseados nos milagres: Baseados na ideia de que a ocorrência de acontecimentos que violam as leis da natureza prova a existência de uma inter­venção divina.
6. Argumentos baseados na experiência religiosa: Baseiam-se nas visões ou sentimentos que os crentes têm.
         
Almeida, A. & Murcho, D. (2006). Textos e problemas de filosofia. Lisboa: Plátano Editora, pp. 166-167.