terça-feira, 13 de novembro de 2018

Pseudociência

Pseudociência, ou falsa ciência, é tudo o que pretende passar por ciência, talvez na tentativa de obter o prestígio e o reconhecimento de que a ciência goza, mas não é de facto ciência. E não é ciência porque não reconhece de forma permanente e inequívoca a exis­tência de eventuais erros. Um cientista procura sempre saber se está enganado (se está, fica contente quando deixa de estar). Um pseudocientista, se esta designação faz algum sentido como pro­fissão, não admite que se engana e não procura por isso o erro (mais: costuma ficar irritado quando lhe apontam o dislate). As atividades pseudocientíficas são numerosas no mundo de hoje: exemplos são a numerologia, a astrologia, a radiestesia, a alquimia, a quiromancia, etc., etc. Há até quem leia o futuro nas borras do café, tendo esse ofício não só uma designação especifica, como uma comunidade de adeptos. São mais as pseudociências do que as ciências.
Existe, em geral, uma relação histórica entre pseudociência e ciência: aquela precedeu esta (a numerologia foi anterior à matemá­tica, a astrologia anterior à astronomia, a alquimia anterior à química). Poderia, por isso, pensar-se que as pseudociências teriam sido substituídas pelas ciências e abandonadas, mas não é assim: as pseudociências coexistem hoje com as ciências, confundindo-se umas e outras aos olhos e nos cérebros de muita gente. Um paradoxo muito interessante das sociedades desenvolvidas (e cujo desenvolvimento deriva precisamente do cultivo das ciências e das tecnologias) é o facto de as pseudociências continuarem a ocupar um papel socialmente relevante.
Mas convém estar atento e descobrir as diferenças: assim como a definição de atividade científica — a busca do erro — não assenta nas várias atividades pseudocientíficas, também os traços característicos da ciência — a comunicação e a acumulação — não se encontram onde a ciência falta. A astrologia não é astronomia porque um astrólogo não se expõe à critica dos pares (onde é que já se viu um astrólogo corrigir outro?) e porque a astrologia de hoje é essencialmente a astrologia de há um século (pode até ser feita com computadores, mas a forma não rejuvenesce o conteúdo).
Usando estes critérios simples, não será difícil ao leitor distinguir entre o que é ciência e o que, não o sendo, quer passar por ela.
Portugal, um pais em desenvolvimento, está cada vez mais exposto a correntes pseudocientíficas. Qual é o remédio? Mais ciência, mais cultura científica. Os cientistas, os professores de ciências, os cidadãos cientificamente cultos têm o dever, mais do que o direito, de mostrar ao público o valor da ciência, o que ela já conseguiu para o enriquecimento humano e o mais que poderá ainda conseguir (e que excede em muito os resultados da tecnologia que nos têm garantido a sobrevivência física). A ciência é um ingrediente da cultura, da civilização neste planeta. Nas palavras autori­zadas de Albert Einstein, escolhido pela revista Time como «homem­ do século»:
Comparada com a realidade, a nossa ciência pode parecer primi­tiva e infantil, mas é a coisa mais preciosa que temos.

Fiolhais, C. (2002). A coisa mais preciosa que temos. Lisboa: Gradiva, pp. 20-21.

Demarcação

Há um grande ceticismo sobre a possibilidade de se distinguir efetivamente a ciência da não-ciência. A ideia de que não podemos ter um critério de demarcação satisfatório é motivada pelas tentativas falhadas de prover tal critério no passado, e pela observação da diversidade cada vez maior de métodos e finalidades das disciplinas que somos inclinados a considerar como científicas. Como podemos esperar oferecer uma explicação unificada do que faz da investigação uma investigação científica, em disciplinas tão diferentes como a física, a geologia e a economia?
Ainda que a tarefa de delimitar a ciência possa parecer infrutífera, há muito boas razões para continuar a insistir. É importante saber em que especialistas se deve confiar, que projetos de investigação financiar, que teorias ensinar nas escolas. E as decisões sobre estas questões não podem ser tomadas apenas com base na consistência teórica ou na aparente adequação da teoria aos dados empíricos. Precisamos de uma explicação do que a ciência é, do que os cientistas fazem e de que metas e métodos caracterizam a investigação científica. Não é provável que a explicação bem‑sucedida (se é que tal coisa existe) seja muito específica, pois é um facto que a especialização conduziu a uma série de conceitos diferentes de indícios e, além do mais, a diferentes critérios para o êxito nas ciências naturais e entre estas e as ciências sociais.
As questões ligadas à delimitação da ciência adquirem grande importância na sociedade contemporânea, onde a ciência é investida de uma autoridade e responsabilidade especiais. Os cientistas são muitas vezes quem aconselha os governantes sobre as políticas a seguir, e as suas opiniões são amplamente solicitadas e ouvidas nos meios de comunicação. Em virtude dos seus conhecimentos especializados, do seu estatuto enquanto cientistas, alguns deles são chamados a encontrar soluções para muitos dos nossos problemas quotidianos, desde lidar com os efeitos das secas a evitar que novos programas de ensino produzam efeitos adversos nas crianças. Se é atribuída tanta responsabilidade quer aos cientistas quer à comunidade científica como um todo, parece que precisamos com alguma urgência de uma explicação sobre o que é uma disciplina propriamente científica, por oposição ao exercício de disciplinas que não partilham da mesma respeitabilidade e autoridade social, como a astrologia e a quiromancia. Além do mais, fazer investigação científica em muitas áreas (em biomedicina, agricultura, em recursos energéticos renováveis, por exemplo) pode trazer grandes benefícios às pessoas e às sociedades, e portanto é algo que deveria ser amplamente apoiado e promovido. Se a ciência tem algum valor num contexto de recursos públicos limitados, ele está em fazer pressão para que possamos ser capazes de identificar exemplos genuínos de investigação científica e projetos de investigação válidos.
Na tradição, a discussão sobre o critério de demarcação entre a ciência e a não-ciência estruturava-se em torno da tentativa de explicar por que razão a física é uma ciência e a astrologia não, e de que maneira o método científico é diferente da magia ou da revelação divina. Hoje, porém, os filósofos que se interessam pelo critério de demarcação têm em mente um conjunto de questões inter-relacionadas, e não aspiram necessariamente a fornecer uma descrição da ciência que responda a todas elas de uma só vez.
Eis uma lista provisória:
·      Será que o tema da investigação é importante para se saber se um projeto de investigação é considerado científico?
·      Podem a antropologia, a psicologia e a economia ser consideradas ciências legítimas mesmo não sendo governadas por leis?
·      O criacionismo tem a aparência superficial de uma ciência. Ora, por que razão não é visto por muitos como uma teoria científica legítima?
·      Qual é a diferença entre a filosofia e a ciência, uma vez que ambas pretendem chegar a uma melhor compreensão dos fenómenos à nossa volta?
No século xx, filósofos inspirados por um movimento chamado Positivismo Lógico analisaram formas de obter e organizar conhecimento com vista a identificar diferenças importantes entre a ciência e a metafísica e entre a ciência e a ética. Os positivistas lógicos, muitos dos quais formados em ciências naturais, sociais ou matemática, acreditavam fortemente no valor da ciência (é por isso que se chamam positivistas lógicos), tentando justificar o seu estatuto de única fonte respeitável de conhecimento factual ao analisarem a estrutura lógica e a linguagem das alegações de conhecimento (é por isso que se chamam positivistas lógicos). Um dos objetivos deste capítulo é passar em revista e avaliar os pontos fortes e as limitações da sua explicação da demarcação entre a ciência e a não-ciência, antes de passar ao exame dos desenvolvimentos posteriores das suas ideias e das objeções que tal explicação originou.
Algumas destas objeções podem ser encontradas nas obras de Karl Popper, Paul Thagard e Paul Feyerabend. Popper, que partilha alguma da ênfase dos positivistas lógicos no valor e na objetividade da ciência, segue uma linha de orientação diferente na sua procura de um critério de demarcação. Acredita que a ciência é a tarefa racional por excelência e procura ativamente uma estratégia viável para distinguir as teorias científicas genuínas das teorias que à primeira vista parecem científicas, mas que não conseguem sê-lo (exemplos de pseudociência).
Ao contrário de Popper e dos positivistas lógicos, Thomas Kuhn dá ênfase aos fatores históricos e sociais que determinam o êxito de uma teoria científica ou de um projeto de investigação. Uma teoria ou um projeto podem ser considerados científicos num contexto histórico e social mas não noutro, pois os critérios que uma teoria ou um projeto precisam de satisfazer para poderem ser considerados ciência também variam com base na análise feita por Kuhn da ciência sensível à história, Thagard desenvolve um critério de demarcação dependente do contexto, que tenta explicar por que razão algumas disciplinas podem ver o seu estatuto mudar de científico para pseudocientífico ou vice-versa. Feyerabend adota uma posição mais radical, negando qualquer espécie de estatuto especial à ciência. Argumenta contra a pretensa supremacia da metodologia científica sobre tradições alternativas de pensamento.

Bortolotti, L. (2013). Introdução à filosofia da ciência. Lisboa: Gradiva, pp. 17-20.