domingo, 3 de novembro de 2013

Racionalidade instrumental, racionalidade teórica e racionalidade prática

O que é ser racional? De quê ou de quem afirmamos a racionalidade?  De pessoas, ações, pensamentos, crenças? Onde podemos ir buscar uma primeira definição operacional de racionalidade,  um ponto de partida para uma investigação?
Antes de olharmos um pouco para a história do problema da racionalidade e para o seu tratamento na literatura, procuremos nas nossas intuições: veremos que começar pela definição instrumental de ‘racionalidade’ é a forma natural de começar. Tendemos a qualificar como ‘racional’ o que se passa em circunstâncias deste género: temos um agente que crê determinadas coisas, tem determinados desejos, e que em função dessas crenças e desejos age de forma a obter aquilo que pretende, de forma a desencadear o estado do mundo que corresponderá à satisfação dos seus desejos (por exemplo, alguém que espera uma mensagem importante, deseja avidamente lê-la, crê que essa mensagem acabou de chegar, e dirige-se imediatamente à caixa do correio para a ler). Aquilo de que estamos a falar quando qualificamos como racional o comportamento desse agente é de uma ação apropriada a uma dada finalidade, da seleção e mobilização de meios com vista a um determinado fim (os fins do agente são relativos àquilo que ele deseja, e os agentes chegam supostamente à situação de decisão já munidos de de­sejos). Não chamaríamos racional ao comportamento do agente se este, esperando uma mensagem importante, desejando avidamente lê-la, acreditando que a mensagem acabou de chegar, em vez de se dirigir imediatamente à caixa do correio fugisse desta a sete pés (convenhamos que isto pode perfeitamente acontecer — o funcionamento das crenças e desejos de agentes humanos não é nada simples).
A definição de ‘racionalidade’ que acabei de avançar é a mais consensual e comum. Corresponde à chamada definição instrumental da racionalidade, que nos diz o que é racionalidade na ação. A definição instrumental pode ainda fazer referência a processos mentais (crenças, desejos) envolvidos num processo de controlo da realidade por parte de um ser inteligente. Se há alguma coisa quanto à qual as pessoas que falam de racionalidade estão de acordo é a definição instrumental de racionalidade. […]
[A] racionalidade teórica é racionalidade nas crenças. Em princípio […] as nossas crenças são racionais se temos boas razões para as sustentar e se são fiáveis […] na forma como representam o mundo. […] Quanto à racionalidade prática, ela é racionalidade na ação, e o raciocínio prático é o raciocínio que eventualmente afeta planos e intenções do agente e resulta numa determinada decisão que conduz à ação.
[…] A questão básica da racionalidade teórica é saber em que devemos acreditar.
[…] A questão básica da racionalidade prática é saber o que devemos fazer.
Em ambos os domínios, racionalidade nas crenças e racionalidade na ação, há espaço para a irracionalidade: são casos de irracionalidade, acreditar no que não temos razões para acreditar, não acreditar no que temos razões para acreditar, não fazer o que queremos fazer, acreditamos que devemos fazer e temos boas razões para fazer, fazer aquilo que acreditamos que não devemos fazer […].

Miguens, S. (2004). Racionalidade. Porto: Campo das Letras, pp. 47-52.

Link para o texto com questões: http://pt.scribd.com/doc/181358934/Racionalidade-instrumental-racionalidade-teorica-e-racionalidade-pratica