quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Filosofia trocada por miúdos


Para compreender o que é a filosofia, vamos primeiro pensar sobre como sabemos nós das coisas. Por exemplo, como sabemos que está a chover em Paris? A resposta óbvia é que sabemo-lo porque, se estivermos em Paris, vemos que está a chover. Contudo, será esta a única maneira de sabê-lo? Não; também podemos sabê-lo porque, apesar de estarmos em Évora, estamos a falar no Facebook com a nossa irmã que está em Paris e ela diz-nos que está a chover.
Estas duas maneiras de saber que está a chover em Paris têm como base a mesma coisa: alguém (nós ou a nossa irmã) olha e vê que está a chover. Ou seja, este tipo de conhecimento tem como base os sentidos — neste caso, o sentido da visão. Porém, em alguns casos temos conhecimento das coisas por meio do sentido da audição (ouvimos uma música ou alguém a falar), do olfacto (sentimos o cheiro maravilhoso de uma laranja acabada de espremer) ou então do tacto (sentimos o calor e a textura especial da areia da praia, num dia de verão).
Será que todo o conhecimento tem por base os sentidos? A resposta óbvia é que não, pois não sabemos matemática pelos sentidos: só sabemos matemática raciocinando. Raciocinamos e sabemos que cinco mais trinta é trinta e cinco, por exemplo.
Além disso, o conhecimento que os sentidos nos dão é muito limitado: a cada momento os sentidos dizem-nos apenas o que está a acontecer. Precisamos de raciocinar para saber coisas mais complexas e menos imediatas: como viviam os dinossauros há oitenta milhões de anos, por exemplo, ou como se ligam as moléculas de oxigénio e de hidrogénio para formar a água.
Portanto, mesmo as coisas que conhecemos pelos sentidos exigem raciocínio da nossa parte. Quando a nossa irmã nos diz no Facebook que está a chover em Paris, temos de raciocinar para concluir que está realmente a chover lá. E o raciocínio é aproximadamente este: ela não teria razão para mentir; além disso, seria improvável que estivesse enganada; logo, está realmente a chover em Paris.
O raciocínio é muitíssimo importante, assim como os sentidos. Algumas coisas só podemos conhecer verdadeiramente pelos sentidos; outras, porém, não podemos conhecer pelos sentidos. É o caso dos assuntos da matemática. E é o caso dos assuntos da filosofia.
Em filosofia estudamos problemas que não podem ser adequadamente estudados recorrendo aos sentidos; só podem ser adequadamente estudados recorrendo ao raciocínio intenso, tal como na matemática. A diferença é que na matemática só estudamos problemas sobre núme­ros, figuras geométricas e coisas desse género. Em filosofia, em contrapartida, estudamos quaisquer problemas que só pelo raciocínio possam ser abordados adequadamente. Por exemplo, será injusto que algumas pessoas tenham dinheiro suficiente para comprar um avião particular, ao passo que outras não conseguem comprar um carro? Se for injusto, por que razão é injusto? E se não for injusto, por que razão não é injusto? Estas perguntas fazem-nos perguntar o que é afinal realmente a justiça: quais são as características gerais que tornam uma sociedade ou situação justa e outra injusta?
Este é apenas um exemplo de uma área de problemas da filosofia; mas há muitas outras áreas. Por exemplo, todos pensamos que há uma realidade exterior aos nossos pensamentos, realidade essa que é em grande parte independente de nós. Contudo, o que justifica tal ideia? Não pode ser apenas o facto de termos várias impressões sensíveis (audição, tacto, visão), pois quando estamos a sonhar também as temos — mas nesse caso não pensamos que a praia com que estávamos a sonhar realmente existe, ou que estávamos realmente nessa praia. Pelo contrário, estávamos era na nossa cama a sonhar. Quem nos garante então que não estamos a sonhar quando pensamos que estamos acordados?
É muito difícil responder às perguntas filosóficas porque não se vê como poderíamos responder recorrendo aos sentidos. Tudo o que podemos fazer é raciocinar muito cuidadosamente, tentando responder de um modo que resista às objecções. É por isso que a filosofia é completamente diferente das religiões. Neste último caso, não se trata de procurar respostas raciocinando intensamente; trata-se, antes, de aceitar as respostas de uma autoridade antiga, ou de um texto sagrado.
A filosofia atrai pessoas que gostam da aventura de pensar, e que não têm medo de saber que não sabem. Em filosofia tendemos a pensar que somos mais sábios quando sabemos que não sabemos do que quando pensamos que sabemos mas não sabemos.
Muitas pessoas irritam-se com a filosofia porque querem respostas e já se esqueceram da excitação que é procurar respostas a perguntas tão difíceis que não há respostas consensuais entre os especialistas. Esqueceram-se da excitação que é explorar o desconhecido, sem garantia alguma de des­cobrir todos os seus mistérios. Para essas pessoas, a filosofia é incompreensível porque, em vez de nos dar uma só resposta para cada problema, dá-nos várias: são as várias tentativas dos filósofos para responder adequadamente aos problemas da filosofia. Só que outros filósofos discordam, e então gera-se uma discussão de ideias.
Para quem gosta de raciocinar, a filosofia é a coisa mais preciosa que temos. Muitíssimo mais preciosa do que a ciência, muitíssimo mais preciosa do que as artes, muitíssimo mais preciosa do que as religiões. Porque é na filosofia que ficamos frente a frente com as perguntas mais difíceis que os seres humanos são capazes de fazer, e não desistimos de tentar responder da maneira mais rigorosa possível, sem abandonar a nossa racionalidade comum, sem invocar autoridades — seja autoridades religiosas, seja autoridades científicas, seja até autoridades filosóficas! 

Murcho, D. (2016). Todos os sonhos do mundo e outros ensaios. Lisboa: Edições 70, pp.165-168.