Para compreender o
que é a filosofia, vamos primeiro pensar sobre como sabemos nós das coisas. Por
exemplo, como sabemos que está a chover em Paris? A resposta óbvia é que
sabemo-lo porque, se estivermos em Paris, vemos que está a chover. Contudo,
será esta a única maneira de sabê-lo? Não; também podemos sabê-lo porque,
apesar de estarmos em Évora, estamos a falar no Facebook com a nossa irmã que
está em Paris e ela diz-nos que está a chover.
Estas
duas maneiras de saber que está a chover em Paris têm como base a mesma coisa:
alguém (nós ou a nossa irmã) olha e vê que está a chover. Ou seja, este tipo de conhecimento tem
como base os sentidos — neste caso, o sentido da visão. Porém, em alguns casos
temos conhecimento das coisas por meio do sentido da audição (ouvimos uma
música ou alguém a falar), do olfacto (sentimos o cheiro maravilhoso de uma
laranja acabada de espremer) ou então do tacto (sentimos o calor e a textura
especial da areia da praia, num dia de verão).
Será
que todo o conhecimento tem por base os sentidos? A resposta óbvia é que não,
pois não sabemos matemática pelos sentidos: só sabemos matemática raciocinando. Raciocinamos e
sabemos que cinco mais trinta é trinta e cinco, por exemplo.
Além
disso, o conhecimento que os sentidos nos dão é muito limitado: a cada momento
os sentidos dizem-nos apenas o que está a acontecer. Precisamos de raciocinar
para saber coisas mais complexas e menos imediatas: como viviam os dinossauros
há oitenta milhões de anos, por exemplo, ou como se ligam as moléculas de oxigénio
e de hidrogénio para formar a água.
Portanto,
mesmo as coisas que conhecemos pelos sentidos exigem raciocínio da
nossa parte. Quando a nossa irmã nos diz no Facebook que está a chover em
Paris, temos de raciocinar para concluir que está realmente a chover lá. E o
raciocínio é aproximadamente este: ela não teria razão para mentir; além disso,
seria improvável que estivesse enganada; logo, está realmente a chover em Paris.
O
raciocínio é muitíssimo importante, assim como os sentidos. Algumas coisas só
podemos conhecer verdadeiramente pelos sentidos; outras, porém, não
podemos conhecer pelos sentidos. É o caso dos assuntos da matemática. E é o
caso dos assuntos da filosofia.
Em
filosofia estudamos problemas que não podem ser adequadamente estudados recorrendo
aos sentidos; só podem ser adequadamente estudados recorrendo ao raciocínio
intenso, tal como na matemática. A diferença é que na matemática só estudamos
problemas sobre números, figuras geométricas e coisas desse género. Em
filosofia, em contrapartida, estudamos quaisquer problemas que só pelo
raciocínio possam ser abordados adequadamente. Por exemplo, será injusto que
algumas pessoas tenham dinheiro suficiente para comprar um avião particular, ao
passo que outras não conseguem comprar um carro? Se for injusto, por que
razão é injusto? E se não for injusto, por que razão não é
injusto? Estas perguntas fazem-nos perguntar o que é afinal realmente a
justiça: quais são as características gerais que tornam uma sociedade ou
situação justa e outra injusta?
Este
é apenas um exemplo de uma área de problemas da filosofia; mas há muitas
outras áreas. Por exemplo, todos pensamos que há uma realidade
exterior aos nossos pensamentos, realidade essa que é em grande parte
independente de nós. Contudo, o que justifica tal
ideia? Não pode ser apenas o facto de termos várias impressões sensíveis
(audição, tacto, visão), pois quando estamos a sonhar também as temos — mas nesse
caso não pensamos que a praia com que estávamos a sonhar realmente existe, ou
que estávamos realmente nessa praia. Pelo contrário, estávamos era na nossa
cama a sonhar. Quem nos garante então que não estamos a sonhar quando pensamos
que estamos acordados?
É
muito difícil responder às perguntas filosóficas porque não se vê como
poderíamos responder recorrendo aos sentidos. Tudo o que podemos fazer é
raciocinar muito cuidadosamente, tentando responder de um modo que resista
às objecções. É por isso que a filosofia é completamente diferente das
religiões. Neste último caso, não se trata de procurar respostas
raciocinando intensamente; trata-se, antes, de aceitar as respostas de uma
autoridade antiga, ou de um texto sagrado.
A
filosofia atrai pessoas que gostam da aventura de pensar, e que não têm medo de
saber que não sabem. Em filosofia tendemos a pensar que somos mais sábios
quando sabemos que não sabemos do que quando pensamos que sabemos mas não
sabemos.
Muitas pessoas
irritam-se com a filosofia porque querem respostas e já se esqueceram da
excitação que é procurar respostas a perguntas tão difíceis que não há
respostas consensuais entre os especialistas. Esqueceram-se da
excitação que é explorar o desconhecido, sem garantia alguma de descobrir
todos os seus mistérios. Para essas pessoas, a filosofia é incompreensível
porque, em vez de nos dar uma só resposta para cada problema, dá-nos várias:
são as várias tentativas dos filósofos para responder adequadamente aos
problemas da filosofia. Só que outros filósofos discordam, e então gera-se uma
discussão de ideias.
Para quem gosta de
raciocinar, a filosofia é a coisa mais preciosa que temos. Muitíssimo mais
preciosa do que a ciência, muitíssimo mais preciosa do que as artes, muitíssimo
mais preciosa do que as religiões. Porque é na filosofia que ficamos frente a
frente com as perguntas mais difíceis que os seres humanos são capazes de
fazer, e não desistimos de tentar responder da maneira mais rigorosa possível,
sem abandonar a nossa racionalidade comum, sem invocar autoridades — seja
autoridades religiosas, seja autoridades científicas, seja até autoridades
filosóficas!
Murcho, D. (2016). Todos os
sonhos do mundo e outros ensaios. Lisboa: Edições 70, pp.165-168.